sexta-feira, setembro 12, 2008

PADRÕES COM REFERÊNCIAS AOS NAUFRÁGIOS DO GALEÃO “SAN PEDRO DE ALCANTARA” E DA BALANDRA “EL VENCEJO”, AMBOS DE ORIGEM ESPANHOLA, NAS COSTAS DE PENICHE

Por: Fernando Engenheiro
Na noite de 2 de Fevereiro de 1786 o galeão espanhol “San Pedro de Alcantara” teve o seu fim na costa Norte de Peniche, mais exactamente nos rochedos da Papoa onde, pela ignorância ou desinteligência de três pilotos que o dirigiam, veio perder-se com óptimo tempo e mar sereno.
Carregado com um valor imenso, quase tudo ah se perdeu e, com o seu precioso carregamento, foi perdida a vida de cerca de 300 pessoas que pereceram afogadas, salvando-se pouco mais de 170 vidas, entre soldados, tripulantes e passageiros.
Ainda o pesadelo que foi este naufrágio estava a ser sentido por todos - inclusive pela própria população de Peniche que ocorreu ao salvamento oferecendo agasalhos, comestíveis e as próprias casas aos sobreviventes — quando, 3 meses depois, a 28 de Abril, uma outra embarcação e a balandra “El Vencejo”, que viera propositada mente para trabalhar na recuperação dos salvados do “San Pedro de Alcantara”, já com algum carregamento aproveitado, não pôde vencer um impetuoso vendaval, rebentou as amarras e veio a destroçar-se na praia de Peniche de Baixo, apesar dos esforços da tripulação e dos socorros de terra. Perderam-se mais de 92 vidas, salvando-se apenas 12.

Entre os falecidos encontravam-se alguns sobreviventes do primeiro naufrágio que regressavam as suas origens. Nova fatalidade impediu assim que chegassem ao seu porto de destino.
Como é sabido, a população de Peniche, os religiosos da ordem franciscana que tinham perto o seu Convento (Bom Jesus de Peniche) e a guarnição militar aqui fixada na Forta leza de Peniche deram assistência aos feridos e enterraram os náufragos do “San Pedro de Alcantara” falecidos. Ali, muito perto do local do naufrágio, foi aberta uma vala comum, numa enseada deserta, denominada “Porto da Areia Norte”, onde foram inumados alguns corpos que, possivelmente por já se encontrarem em decomposição, não foi possível sepultar nas igrejas existentes, pelos perigos que daí poderiam advir para a saúde pública.
O Governo Espanhol quis perpetuar a sua memória encomendando um simples e humilde monumento, mas com muito significado, que consistia numa cruz de pedra, semelhante às de S. Tiago (com as pontas clavetadas ou chavetadas), para mandar colocar sobre o espaço ocupado pelos restos mortais daqueles infelizes náufragos.
Possivelmente por um dos náufragos ail inumados ser um dos oficiais de maior patente daquela guarnição flutuante, foi gravado na pedra o seguinte epitáfio:
“Aqui jase Don Vicente Vargas y Varaes,
Teniente de Fragata de la Real Armada
de S. M. Católica, que naufragó
en el navio de guerra Espanhol San
Pedro de Alcantara nel sitio de
la Papoa la noche del dia 2
de Feberero de 1786”
Era este monumento ali colocado a única recordação de tão desastroso acontecimento - de tanta celebridade que, entre os povos circunvizinhos de Peniche, ficou marcando uma época e que acabava por servir de ponto de partida para as suas recordações cronológicas.
O Governo Espanhol quis também perpetuar a memória do naufrágio da balandra “El Vencejo” com monumento seme hante, mandado colocar junto aos seus náufragos inumados numa zona hoje mal identificada pois a maldade ou incúria dos homens o destruiu para sempre, sem deixar qualquer rasto dos seus destroços.
Julgo que se situava numa pequena ilha de terra seca, nica na época, formada em todo o Murraçal de Peniche de Cima, fora das muralhas, mais propriamente no sitio onde hoje está implantado um posto de transformação de energia eléctrica, a Sul do antigo muro da já desaparecida fábrica “Benito Garcia” (que deu lugar às instalações do “Intermarché”).
No Livro de Actas da Câmara Municipal de Peniche de 1843/1 850, a fls. 122 v., (data ilegível), consta que um grupo de emigrados espanhóis, à guarda do Depósito de Presos na
Fortaleza de Peniche, adivinhando o que o futuro reservava para aqueles monumentos, apresentou um requerimento à Câmara Municipal nos seguintes termos:
“Requerimento dos Emigrados Hespanhóis residentes neste Depósito pedindo licença para trasladarem os restos inanimados de seus compatriotas que há coisa de uns sessenta anos se achão colocados debaixo de duas cruses no norte desta Península como attestão as inscripções lavradas nas bases das mesmas cruses para o Cemitério público desta Villa, e a Câmara tendo ponderado a este respeito acordou o seguinte: - Que obtida a licença da Junta de Parochia para a demolição dos monumentos que attestão a existência dos restos que annuncião em seu requerimento, se lhes concede a licença pedida’
Tudo ficou sem efeito na sessão seguinte, da qual a fls. 123 v. (data ilegível), se relata o seguinte:
“Foi presente um requerimento de vários habitantes desta Villa, mostrando a sua desaprovação à licença que esta Câmara tinha concedido aos Emigrantes Hespanhóis para introdusirem no Cemitério os restos de seus Compatriotas que há sessenta annos se achão enterrados junto de duas cruses’
Ao descrever estes episódios passados em meados do século dezanove, recordo aquilo que, pouco mais de cem anos depois, eu acabei por fazer com o cruzeiro do Porto de Areia do Norte.
Estava-se no último lustro da década de 50 do século passado e eu, que já há alguns anos era funcionário municipal, tinha conhecimento de que a Edilidade de então, administrada por António da Conceição Bento, tinha encomendado ao João dos Santos Fernandes Afra, mais tarde escultor, o levantamento topográfico daquela zona, bem como a elaboração de um “croquis” dando uma ideia para o seu ajardinamento, ficando o antigo cruzeiro em destaque sem que para isso fosse necessária qualquer remoção do monumento.
O tempo foi passando. A ideia era boa, mas a execução não passava da gaveta sem a devida autorização para avançar. Por diversas vezes ali passei e muito me custava ver a degradação que o monumento vinha apresentando. A base em que se assentava a peanha que em tempos ostentava a cruz estava no chão. Já tinha sido retirada uma das duas pedras gémeas onde assentava a referida peanha possivelmente para servir de poita a qualquer traineira dado o seu formato. Ao que me foi dado saber a grande destruição do monumento não era só resultado da mão do homem mas também do encosto da cabeça de uma vaca tresmalhada que embirrou com monumento provocando o que estava à vista.
Sem qualquer impedimento, pus mãos à obra e procurei preservar o que restava. Com o auxílio de dois trabalhadores eventuais do Município, procedi à remoção das peças existentes para o espaço vedado que circunda o depósito de água (conhecido por filtro de Peniche de Cima) que lhe ficava ali perto. Iria em breve cumprir o serviço militar no Ultramar e receei que quando voltasse já nada existisse, pois entretanto a Administração Municipal jé era outra.
Quatro anos depois, quando regressei, tudo estava como deixei. Pouco tempo depois promovi a remoção do monumento para um lugar de destaque no rés do chão do antigo edificio do Largo do Município que durante alguns anos serviu de sede da Biblioteca Municipal.
Tive o cuidado de o completar colocando-lhe uma cruz do modelo primitivo (o que sô foi possível por ter à minha guarda no Arquivo Municipal o desenho executado pelo já citado João Afra) embora com a pequena alteração por ter de considerar a altura do pé direito do piso onde foi colocado.
Tudo isto foi feito com a melhor das intenções e sujeito a contratempos.
Hoje ao ver este simbólico monumento em sítios mais destacados, sinto que contribuí para a preservação de valioso testemunho da brutal tragédia ocorrida nesta terra há 222 longos anos. Pena é que outros não tivessem feito o mesmo com o cruzeiro da balandra “El Vencejo”.
Peniche, Agosto de 2008.


1 comentário:

Bic Laranja disse...

Aprecio muito ler estas coisas.
Cumpts.