domingo, janeiro 31, 2010

CAPELA DE NOSSA SENHORA DO ABALO QUE EXISTIU JUNTO

Por: Fernando Engenheiro
Perto do extinto convento do Bom Jesus de Peniche, na marginal do norte junto ás arribas, descobrem-se umas ruínas que assinalam exactamente o sítio onde existiu a antiga capela de Bom Jesus do Abalo, ou de Nossa Senhora do Abalo.
Durante séculos este pequeno templo conseguiu suportar os grandes temporais que assolaram o local, mas foram os terrenos fracos daquela zona da nossa costa que provocaram, aos poucos o seu desabamento.
Ao tentarmos aprofundar as origens da construção desta capela num sitio tão desprovido, deparamos com um documento da autoria do Reverendo Padre Franciscano, Belém, cujo teor é o seguinte:
“Não consta ella de papel ou livro algù; mas só está escrito na memória dos moradores de Peniche, onde de pays a filhos se tem conservado indelével na sua lembrança. Dizem elles que em tempos mui antigos dando à costa naquelle roxédo hti navio, entre muitas couzas que o mar lançara fora, tinha sido hù caxote e mays acharão vários passos da Paixão do Filho de Deos esculpidos em madeira, pintados com as suas cores proporcionadas, o mais principal hé o do calvário onde está o Senhor entre os dois ladrões, com a assistência de sua Mãe Santíssima a quem como desmaiada com a violência da dor e do sentimento está sustendo o Evang?, e as outras Mas, donde hé provável nem há mais certeza q da forma da comoção qu abalo q fêz no coração da Senhora a morte do seu adorado Filho, lhe viesse o título, já do Bom Jesus do Abalo, já da Snr do Abalo; pello qual hê
nomiada e venerada neste povo.
Surpreendida e entusiasmada com tão extraordinário despojo, resolveu nela expor à veneração o religioso achado.
Com referência ao documento atrás citado, no que se refere ao espólio que continha o caixote lê-se o seguinte:
“Os Passos q tem, são o Senhor nos assoutes, o Senhor prezo, o Senhor coroado de espinhos, o Senhor vestindo a t depois dos assoutes, o Senhor esperando o preparo da cruz p? ser crucificado, o Senhor na acção de o estarem crucificando, e puxando pellas cordas a cruz levantada, como fica dito entre os dois ladrões, o descimento da cruz, e a acção de o meterem na sepultura. Tudo isto hé como hùa só pessa, ou feito em hù sô madeiro, e figuras mt bem obradas e próprias, desiguaes na grandeza; porque alguãs terão hù palmo, outras dois, e alguãs mais, especialmente o Senhor, a Snr e os Santos. No calvário tem várias figuras a cavalo, como o centurião, e outros, e os cavalos bem ajaezados com seus arreios, freios, e fivelas douradas, e todos os mais passos com os algozes, e soldados correspondentes, tem o Senhor com a cruz às costas, e a molher da Verónica, a Maglalena com os unguentos para a unção, e ainda alguãs figuras de molheres, fora as Marias feitas espectadoras.
Esteve aquele precioso retábulo à veneração dos fiéis com confraria de Senhora do Abalo, anexa à Paroquial Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, cuja extinção remota ao princípio do século dezanove.
Não se sabe ao certo a data de quando este pequeno templo deixou de ter a sua actividade religiosa. O perigo no sítio onde estava implantado era eminente e as autoridades eclesiásticas apontavam a sua decadência de dia para dia.
Numa das visitações de rotina, a cargo do Doutor Brás de Carvalho, procurador apostólico de Sua Santidade, prior da Colegiada de Santo André de Lisboa, àquela ermida dá o seu parecer nos seguintes termos (Livro de Visitações, de 1673/1861 - fls. 17 v., de 20/10/1716): “Visitei a Ermida do Senhor Jesus cita junto ao Convento de St dos Religiosos Capuchos a qual está posta em sima de huma ribanceyra com evidente ruína que o mar lhe vay fasendo, e cada ves mayor. Portanto mando que o Reverendo Pároco noticie as Pessoas que sào obrigadas aos reparos desta Ermida, mandem logo fazer huma parede e da parte do mar na tal Ermida para que não chegue mayor ruina, e mandem a limpar, e cayar por dentro, e rebocar as paredes della que estão com pouco aceyo; e se faltarem ao sobredi to que aqui ordeno, para se acudir ao evidente perigo que ameaça, ficará ao arbitrio do Rev visitador meu sucessor mandar fechar a d Ermida tresladando as sagradas imagens p?. a Matriz, p q. se não exprimente o que tanto ameaça; reparandosse o ameaço desta ruína, na forma que milhor paressam aos Mes Pedreyros.
Ao que nos é dado a conhecer as obras de conservação terão sido então efectuadas, mantendo-se a capela de pé ao serviço dos seus fiéis nos actos litúrgicos.
Na época era ermitão daquela capela, com residência de pa redes meias com o pequeno templo, Martinho da Silva, natural de Santa Comba Dão, Bispado de Viseu, que veio a faleceu no Hos pital da Santa Casa da Misericórdia, já viúvo de Antónia da Silva, a 25/11/1749, e que foi a sepultar na Igreja da Santa Casa da Misericórdia de Peniche.
Foi seu substituto, possivelmente o último ermitão, Francisco Rodrigues que, vindo a faleceu a 9/1/1824, foi a sepultar no adro da Igreja de S. Pedro e transportado na tumba da Santa Casa, a partir do Hospital daquela instituição.
Não é difícil compreendermos que o desmoronamento e arraso total desta pequena ermida se ficou devendo à abolição das ordens religiosas em 1834, atendendo à sua dependência do Convento que lhe ficava tão perto. A cobiça e a maldade dos homens também terão contribuído para o seu desaparecimento, já que as suas cantarias terão sido aproveitadas para novas construções particulares, como aconteceu relativamente ao convento já referido.
Hoje no local só restam alguns alicerces vis ao nível do solo onde a capela existiu.
Notas diversas
Devo referir que o retábulo que terá dado origem à Capela foi, antes do seu desmoronamento, transferido para a Capela do Calvário (fronteira à Igreja de Nossa Senhora da Ajuda) onde permaneceu, esquecida a sua origem e o também seu valor. Trata-se de um retábulo flamengo da Escola de Bruxelas, do século XV, considerado como exemplar único em Portugal. Está agora, desde há alguns anos, exposto na Galeria de Arte Sacra da Santa Casa da Misericórdia de Peniche.

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