terça-feira, maio 27, 2008

O OFICIO DE SAPATEIRO ARTESANAL EXTINTO EM PENICHE

Por: Fernando Engenheiro
Desde tempos muito remotos que existe a profissão de “sapateiro”, com as distinções de “manufactores de calçado” e “sapateiros de calçado velho” (remendões).
Embora este oficio tivesse regimento dado pelo Senado da capital do Reino em 1572, noutros pa já lhes davam o devido respeito e consideração pelas actividades que exerciam. Faziam-se representar com os seus pendões em solenidades e festas, como por exemplo em Liège e Bruxelas, bem como em Gante, datando de 1103 a figuração da sua nobreza com as armas do oficio, dadas pelo Conde da Normandia. Mais tarde, em 1304, aparecem já associados, segundo consta nos Regulamentos da sua corporação que desta data existem em Gante.
De 1379 data a instituição da Irmandade dos Companheiros Sapateiros, que se estabeleceu na Catedral de Paris por privilégio de Carlos o Sábio.
Esta confraria celebrava a sua testa principal no dia 25 de Outubro, que é o dia de S. Crispim e S. Cristiano, na realidade, porém, durava três dias durante os quais estavam fechadas todas as sapatarias da cidade.
No dia anterior lam a vésperas e no dia a seguir à missa pelas almas dos defuntos, mas em nenhum destes dois dias se trabalhava.
Possivelmente foram escolhidos estes dois santos para padroeiros das suas artes por serem sapateiros de oficio que trabalhavam de graça para os pobres.
Os estatutos do grémio de sapateiros de Paris, parecidos com os dos seus homogéneos de outras cidades e vilas de nações vizinhas, onde o nosso País estava incluído (sô na capital do Reino estavam registados no livro de oficios de 1550/1551 119 sapateiros (e em 1620 864 sapateiros de obra nova e 120 remendões), eram bastante severos. Para ser mestre sapateiro era preciso saber o ofício e além disso pagar uma importância pelo privilégio, que seria uma soma deveras elevada. Juravam desempenhar o oficio bem e lealmente, segundo os usos e costumes do grémio. Desde que aos Sábados se tocava a vésperas na igreja da freguesia não podiam trabalhar até segunda feira, inclusive (chegou até aos nossos dias a referência a este dia sagrado para os sapateiros com o dito de ser a Segunda-feira “o dia dos sapateiros).
Também lhes era proibido trabalhar com luz artificial, misturar cordovão e carneira no mesmo calçado e vender no mesmo estabelecimento calçado novo e usado.
Ninguém podia ser mestre, nem ter estabelecimento para vender calçado sem ter antes fazer o aludido juramento.
O grémio tinha jurados e comissários encarregados de velarem pelo cumprimento dos estatutos e das visitas de inspecção durante a noite às casas dos sócios.
Assim passaram séculos até que os sapateiros principiaram a querer sacudir a tutela dos mestre e dos jurados.
os oficiais estabeleceram uma verdadeira maçonaria que se es- tendeu por toda a Europa. Juravam pelo Evangelho, pela sua parte no Paraíso e pelas coisas mais sagradas que não revelariam nunca a ninguém os segredos da associação e cumpriram sempre esta promessa.
Desta espécie de maçonaria saíram na realidade as primeiras folgas e as primeiras associações de trabalhadores.
No Foral dado por D. Manuel I “O Venturoso”, em Santarém, a 1 de Junho de 1510 a favor de Atouguia da Baleia e seus domínios está bem patente, nas sentenças e determinações do capítulo 33, o que se oferece sobre este assunto:
“Nove réis por carga major se pagará de sapatos, borzeguins (espécie de bota, com atacadores) e de toda outra calçadura de couro, da qual não pagará o que comprar para seu uso e dos seus, nem dos pedaços de peles ou couros que para seu uso comprarem não sendo pele inteira nem ilhargada, nem lombeiro dos quais pagarão como no capítulo de cima dos couros se contem’
Logo que foi criado o concelho de Peniche (a 11 de Novembro de 1609) a autarquia de então, como já vinha a acontecer com os bons princípios de Atouguia da Baleia, continuou a regular a nobre profissão de sapateiro como passo a citar:
Na Vereação de 19 de Maio de 1629 - Francisco Rodrigues, sapateiro, foi nomeado para servir este ano o ofício de Juiz dos Sapateiros.
No ano seguinte, na Vereação de 4 de Maio de 1630 - Pedro Simões, sapateiro, morador em Peniche, foi nomeado Juiz do of de Sapateiro. Tomou posse.
Na Vereação de 16 de Junho de 1650, para substituir o almocreve Vicente Luís Pinhão, que se negara a tirar as sisas do 1°quartel de 1650, foi escolhido Manuel Pires, sapateiro, morador em Peniche, que aceitou o referido cargo, mediante o pagamento de 10.000 réis que seriam pagos do bolso do dito almocreve. Comprometeu-se a cobrar as sisas, levar o dinheiro a Leiria e trazer a quitação do executor.
Também a Vereação na sua reunião de 28 de Março de 1648 deliberou por unanimidade contra os sapateiros em cujas tendas se faziam “acções prejudiciais às pessoas da Vila”. Foram encerradas as lojas de João Jorge, Filipe Gonçalves, Agostinho Monteiro, André Alves e Domingos Dias. Foi-lhes proibido de usar o oficio de sapateiro sem pedirem nova licença. Pena que lhes seria imposta se infringissem a postura: 2.000 réis.
Pesquisando referências a esta profissão ao longo dos anos só me foi possível encontrar registos de sapateiros desta praça a partir de 1879. Existiam então 19 oficinas da especialidade e os seus proprietários eram os seguintes: Na freguesia de Nossa Senhora de Ajuda - Anacleto José Lopes - Antero do Nascimento - Francisco Vicente - Joaquim Gabriel - Joaquim Pereira Barranquinho - José Gabriel – Lúcio Ribeiro Coelho e Rafael Martins da Costa. Na freguesia de Nossa Senhora da Conceição: Francisco Martins de Sousa - Francisco do Nascimento Renta (filho) – João Antônio - Manuel Capelas - Manuel Franco - Adão e Miguel de Sousa. Na freguesia de S. Pedro: Antônio do Nascimento - Augusto Martins de Sousa - Filipe Quaresma - Francisco do Nascimento Renta (pai) e Pacifico José de Oliveira.
A construção de fábricas de calçado em S. João da Madeira e noutras terras do norte do País provocou alterações profundas no que respeita à actividade artesanal dos “sapateiros” de obra nova. Aquando da implantação da república, o número destas oficinas em Peniche tinha já sofrido redução bastante grande com se ob serva nos registos de 1913. Era somente 5 estabelecimentos industriais cujos proprietários passo a citar: Antero da Ascenção Leitão - Antônio Diogo da Silva - Benjamim Bernardo Soeiro - Filipe Antônio da Costa e Francisco Feiteira.
Abrem-se agora estabelecimentos comerciais para a venda de sapatos feitos, passa o “manufactor de calçado” a “remendão de calçado velho”.
Foi entretanto criada a Liga Portuguesa de Profilaxia Social que muito lutou contra o “pé descalço”, triste sintoma do atraso do nosso povo, costume por tal forma enraizado em certas regiões do País que se tornava assaz difícil combatê-lo com eficácia.
Todavia, não havia argumento sério que se pudesse aduzir em favor de tão estranho hábito, que ofendia as regras mais elementares da higiene, da estética e da própria decência.
As autoridades empenharam-se nesta questão. As câmaras municipais do Porto e de Lisboa, para dar novo impulso à luta contra o “pé-descalço” que já se vinha arrastando desde 1928, determinam na década de 40 a proibição do trânsito nas suas ruas a quem usasse os pé descalços.
Com todas as campanhas desenvolvidas ao longo vários anos contra um hábito que era causa de vergonha nacional, os bons costumes acabaram por se impor, o que se reflectiu no incremento da industria do calçado. A produção passou a ser muito maior e os novos sapateiros começam a especializar-se com os velhos mestre e a estabelecer-se por conta própria.
Em 1952 estavam registadas e em plena actividade em Peniche 17 oficinas de sapateiros (com aproximadamente 50 trabalhadores no ramos) cujos proprietários, seus mestres, eram os seguintes: Antônio Rodrigues Tormenta - Florindo Gaspar – João Dias Ferreira – João Miguel Fonseca - Joaquim Cativo - Joaquim Rodrigues Tormenta - José Antônio Lopes - José de Campos - José Ferreira da Costa - Luís Antônio Salgado - Luis dos Santos - Manuel Antônio Carvalho - Manuel do Nascimento Alves - Manuel Rodrigues Duarte – Manuel Vaqueiro Trigo - Nicolau Bote Martinez e Tomás Antônio Fé-José da Mata.
Há também que contar com alguns prisioneiros civis do Forte de Peniche que, com autorização superior, trabalhavam para o exterior.
Ao chegarmos ao ano 2000 so existia a oficina de “José de Campos” cuja actividade. com o seu falecimento. cessou pouco tempo depois Actualmente a cidade de Peniche é servida por duas oficinas mecanizadas sitas nas Ruas Antônio Cervantes e Estado Português da Índia, que satisfazem as encomendas solicitadas.
APONTAMENTOS DIVERSOS:
- Entre os sapateiros de referência merecem lugar proeminente:
o célebre Hans Sacho, que figura nos Mestre Cantores, a opera de Wagner; Lestage, sapateiro de Luis XIV, inventor do calçado sem costura e poeta extravagante; o primeiro Sforza, fundador da nobilíssima casa italiana, desse nome, que foi filho dum sapateiro. Outro filho de sapateiro chegou a ser Papa: foi Urbano IV, o qual se envergonhava tão pouco da sua origem que ordenou que nos dias de grandes festas o púlpito da igreja de Santo Urbano, de Troyes, fosse revestido com um grande tapete em que estava representada a loja de seu pai.
- No Jornal “O Povo de Peniche”, de 1/3/1931, foi publicado o seguinte anúncio de interesse para este trabalho:
ALPARGATAS DE LONA COM SOLA DE BORRACHA ‘IRROMPIVEL’ - Marca Registada - As meihores lonas e o mais perfeito acabamento.
A venda nos estabelecimentos dos Sr. António Mateus Dias, José de Jesus Leitão, João Baptista da Conceição, Ferreira & Mateus, Joaquim Franqueira, Viúva de David Gonçalves e António da Conceição Bento.”
Eram estes os sapatos das pessoas cujos limitados recursos econômicos não lhes permitiam aceder à compra dos de cabedal.
Peniche, Abril de 2008.

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