Começo par fazer referência à actual
Vila da Nazaré num pequeno resumo sobre a fundação daquela
povoação e seus antecedentes. Por elementos antigos por mim
recolhidos, consta que os habitantes da actual “Nazaré” têm a
sua origem no lugar de Paredes, na continuação da praia do Norte, a
6 quilómetros a norte da freguesia de Maiorca. Foi fundado este
lugar por El-rei Dom Diniz, que lhe deu foral em Coimbra, a 17 de
Dezembro de 1282 - L0. de Doações fls. 61V, col 1 -, e outro dado
pelo mesmo rei, também em Coimbra, a 29 de Setembro de 1286 - Lo. de
Doações do mesmo Monarca, fls. 176V, col. 1). Progrediu muito a
Vila de Paredes, até 1500, mas as areias do mar foram-na invadindo e
arrasando, tendo em conta também o grande maremoto que se seguiu ao
terramoto que assolou uma grande parte do pais a 26 de Novembro de
1531, em que também esta zona não ficou poupada, como consta dos
prejuízos causados no próprio Mosteiro de Alcobaça, que lhe fica
perto, pelo que se despovoou, indo os seus moradores fundar ou
reedificar a Vila da Pederneira, ficando assim, por única memória,
a capela de Nossa Senhora da Vitória, que chegou até aos nossos
dias a grande veneração, destes povos, a casa do ermitão e uni
moinho de vento.
Por mais de 200 anos, foi a Vila de
Paredes uma povoação de bastante importância em especial marítima.
Ao que nos é dado a conhecer, a própria Casa de Deus a que
fazemos referência
então povoação, foi mandada edificar
pelo rei Lavrador, para matriz da freguesia, onde como já afirmei,
tem sido este orago objecto de muita devoção dos povos das
redondezas, que lhes dedicam dias especiais para as suas
manifestações de fé, bastante concorridas de romagens. Seus
habitantes, ao deixarem ao abandono a Vila de Paredes, vieram se
estabelecer no lugar da Pederneira, num morro que tinha a seus pés o
oceano, trazendo todos os seus haveres, os seus forais e privilégios,
Não tardou que os moradores do então lugar de Ílhavo, nas
imediações de Aveiro, em grande parte os seus habitantes da classe
piscatoria, apôs o fecho da Barra, daquele lugar, cm 1756, ficaram
isolados do mar (hoje situado a cerca de sete quilómetros do
oceano), obrigando aquela povoação a procurar outros locais, entre
os quais “Nazaré ocupando espaço à beira-mar, cujas construções
não passavam de umas cabanas para também recolherem os apetrechos
de pesca. Começa a Praia da Nazaré, junto às arribas do sítio, a
povoar-se no segundo quartel do século XIX, já então tinham sido
abolidas as Ordens Religiosas que datam de 1834, sendo proprietária
destes domínios a Ordem de S. Bernardo, com sede no Mosteiro de
Alcobaça, passando a partir de então, sob a Administração do
Poder Autárquico da Pederneira, que se prolongou até 1855, sendo
anexado a Alcobaça e restaurado em 1898.
O pescador desde muito cedo que se
habituou a lidar com a faina do mar e a conhecer praticamente pela
influência dos ventos e pelo aparecimento de certos sinais
atmosféricos, os caprichos e as rabugens do mar: Sendo aquele vasto
espaço salgado, tal como as terras para a população rural, tem os
seus nomes e designações especiais, conhecendo o pescador a sua
constituição, profundidade e por experiências, também, o modo de
pesca que se deve empregar. O problema, de facto, surgia com a
rebentação que se verificava na praia, consequência da ondulação,
das más condições de tempo, da oscilação dos ventos, enfim! Em
muitos dias não se podia ir pescar porque não se podia atravessar a
zona de rebentação das ondas quando, a 50 metros da praia, o mar
oferecia as melhores condições de trabalho.
Os pescadores estavam meses sem ganhar
o sustento para si e seus familiares, o que os obrigava a arriscar as
suas vidas indo para o mar quando praticamente não existiam
condições para tal. Dou, como exemplo, o resultado da ultima
estatística de acidentes que decorreram nos anos de 1889 a 1977, em
que 155 pescadores morreram na Nazaré. Não podiam mais com tanto
sofrimento as mulheres, viúvas e mães, sem os seus filhos, que o
mar cm grande parte não devolveu seus corpos à terra que os viu
partir. O negro do seu vestuário pairava por todas as esquinas.
Considerados aqueles trabalhadores
marítimos dos mais laboriosos e arrojados de todo o litoral
português, em consequência da falta de segurança na pesca e até
as mínimas condições, foi crescendo o desejo do abandono da
actividade piscatória ao longo dos tempos. Apesar de cansados das
suas precárias condições no sustento para si e seus familiares, o
seu pensamento estava na pesca e os filhos nasciam-lhes já amarrados
aos cabos do aparelho de pesca, tradições que se foram transmitindo
de gerações para gerações. O mar continuava a matar, não havia
mais por onde lutai; os dramas eram constantes tanto no mar como em
terra.
Foi logo nos primeiros anos do século
XX que o grande temporal com que se despediu o mês de Setembro de
1907, se traduziu numa terrível inundação ocorrida na Nazaré, que
deixou numerosas famílias sem-abrigo e determinou imensos prejuízos,
invadido pelas areias que a égua arrastou a enorme distância dos
areais, chegando a sua acumulação a atingir em alguns sítios a
altura de mais de dois metros. As ruas principais da parte central da
vila ficaram completamente obstruídas e bastantes casas subterradas
até aos primeiros andares. Havia agora uma boia de salvação, mais
confortável, para os mais prejudicados que pretendiam outras
condições para a sua luta diária. Era Peniche a sua possível
tarefa a realizar, com administração própria, enquanto a Nazaré,
por ser extinto o seu concelho em 1855, passou a pertencer a
Alcobaça. Anos mais tarde, foi restaurado cm 1898, mas em 1912
passou a designar-se por concelho da Nazaré, agora com todas as
atribuições administrativas de concelho. Também a representação
marítima era uma pequena delegação que se fazia representar no
Poder Central.
No início do século XX deu a primeira
migração com rumo a Peniche. Foram famílias completas, uns a pé
pela praia fora, de a fazer-se transportar com o seu foquim, com
alguns alimentos para a viagem, no outro braço o gabão
(oriundo dos habitantes de Ílhavo) em tecido burel, também
designado por “baeta’ a mulher com a canastra de verga à cabeça,
transportando alguma haveres, e os filhos transportando algumas peças
roupas em pequenos sacos formados por retalhos de tecidos dos mais
diversos tamanhos qualidades. Outros ainda conseguiam, mediai
pagamento, serem transportados em galeras de transporte, de tracção
animal puxadas carga a fazerem por duas etapas, pernoitando no lugar
da Da Gorda para descanso do gado.
As mulheres da Nazaré, com as suas
características próprias que nós bem conhecemos, acostumadas a
ajudar os homens, em especial na “arte xávega
que consistia num velho processo de pescar muito usado naquela praia,
em que o aparelho é armado a 1.000 ou a 1.500 metros da borda de
água, com as duas extremidades separadas uns 300 metros no sentido
paralelo à praia. Ao centro fica o “saco’ colocado de forma a
constituir urna ratoeira certa para o peixe que entra na zona de
influência da rede. Era um grande e rude trabalho para as mulheres,
mas que colaboravam com empenho, ao lado dos seus familiares, a puxar
as artes para terra, embora sempre com angústias da ida dos maridos,
dos pais e dos filhos para o lançamento da rede naquelas centenas de
metros, mas nunca lhes passariam pela cabeça instar para que
faltassem ou desistissem. Foi assim que a mulher da Nazaré chegou a
Peniche, lutadora, rude, sem qualquer preconceito da sua dignidade
feminina. Foi um grande choque para a mulher de Peniche, atendendo
aos seus pacatos usos e costumes, resguardada em sua casa, passando
major parte do seu tempo à frente de uma almofada cilíndrica a
construir a renda de bilros, maneira mais cómoda de ajudar o seu
marido nas despesas familiares e para si a mais decente. Pela sua
maneira de se apresentar, ao lado dos homens, sem qualquer
acanhamento na sua labuta e azáfama na preparação de peixe e o seu
fraco vocabulário, contrário à decência e ao pudor a mulher da
Nazaré não foi bem recebida pela mulher de Peniche. Dou como
exemplo dessa diferença, ainda hoje, decorrido um século, quando
alguém faz uma pergunta para ir a um determinado sítio, quando não
há mais referências para a sua identificação, há sempre uma
penicheira a informar que naquele local até lá mora uma nazarena e
já vamos na quarta geração de oriundos da Nazaré naturais de
Peniche.
Desprovida de qualquer intolerância,
com a sua bem conhecida espontaneidade, no seu trabalho de braçal ao
lado do homem, para seu melhor desenvolvimento, atendendo na época
ao uso do seu vestuário da saia comprida a esconder os tornozelos
(uma das partes do corpo da mulher de maior respeito e da mais
dignidade a não ser vista) resolvia o problema com uma corda um
pouco abaixo da cintura, fazendo subir até formar fole, o que
ofendia na época a moral pública, pois estes são pequenos
pormenores mas que a sociedade da época não aceitava. Depois de
sucessivos avisos, as mulheres resolveram o problema ao usarem uns
canos de meias nas pernas que, ao mesmo tempo, resolviam o problema
da barra da saia sempre ensopada em salgadiço, tornando-se uma
defesa para não ferir a barriga das pernas. As mulheres da Nazaré
estavam sempre prontas para as desordens umas com as outras e às
confusões em plena via pública, em especial junte aos marcos
fontenários nos dias de
bichas por a água ser escassa para o consume doméstico.
Depois da primeira migração nos
primeiros anos do século XX, outros naturais da Nazaré vieram a
miúde, até que a crise
da pesca se acentuou naquela vila a partir de 1930. Até essa altura,
a Nazaré estava entre os grandes centros de pesca em Portugal. A
crise surgiu quando a pesca da sardinha naquela costa começou a ser
explorada per traineiras espanholas e portuguesas, pertencentes aos
portos de Peniche, Figueira da Foz e de Leixões, que, aproveitando
as características da pesca artesanal existente na Nazaré, puseram
termo a todas as artes da sardinha que aí
existiam. No entanto, como os pescadores confiaram na construção do
porto de abrigo a fazer pelo Governo de Salazar, adquiriram, por
volta de 1930, 42 traineiras movidas por propulsores mecânicos,
chegando os seus proprietários, quase todos pescadores, a hipotecar
todos os seus haveres. Uma vez que a promessa não foi cumprida, os
seus proprietários foram obrigados a desfazerem-se delas para pagar
as suas dívidas e obrigados, em grande parte, a fazerem rumo a
Peniche. Assim, em 1958, ainda existiam 16 traineiras na Nazaré. Em
1959, seis, e em 1975 já não existia nenhuma, muitas também foram
as embarcações que saíram com destino ao desenvolvimento da pesca
em Peniche.
Peniche e Nazaré foram dois povos que,
durante o século XX, trabalharam na sua labuta de mãos dadas,
recompensaram esta terra com as suas experiências e o seu saber na
arte de pescar, que muito lhes devemos. Temos uma divida para com
esta colónia, de nunca lhes ter dado o reconhecimento e o
agradecimento em publico, pois grande parte do desenvolvimento desta
península, desde o princípio do século XX, a ela se deve.
Apontamentos diversos
Foi a 3 de Setembro de 1983 que ocorreu
a abertura simbólica do Porto de Abrigo da Nazaré, na presença do
Primeiro ministro da época, Dr. Mário Soares, acompanhado pelo
Ministro do Mar, Carlos Melancia. A construção do Porto de Abrigo,
na enseada da Nazaré, constituiu uma velha aspiração local. Os
estudos para tal realização foram retomados em 1971, estudo este
concessionado em 1977, após
anuncio público em Maio do mesmo ano, feito pelo Primeiro-ministro,
Mário Soares, que garantia assim o arranque das obras da construção
do referido Porto de Abrigo. Concluída a obra, na década de 80,
foram poucas as famílias que voltaram às origens, deixando a
comunidade piscat6ria de Peniche.
Texto: Fernando Engenheiro
De referir um nome esquecido, que lutou bastante para que o Porto da Nazaré se tornasse realidade. Deve-se mais a ele o Porto da Nazaré do que aqueles citados, apesar da História registar Soares e Carlos Melância, Vasco da Gama Fernandes foi um incansável defensor do Porto de abrigo da Nazaré.
ResponderEliminarObrigado!
ResponderEliminarPOR LEMBRAR QUEM DEVE SER LEMBRADO.