domingo, setembro 24, 2006

A CONSTRUÇÃO NAVAL EM PENICHE AO LONGO DOS SÉCULOS

Por: Fernando Engenheiro
As navegações e conquistas dos portugueses justificam historicamente a existência por todo o nosso litoral de polos de construção naval.
A natural posição do país, à beira dum imenso oceano e próximo dum continente estranho ao dele, impeliu os seus naturais para as rudes ides do mar onde cedo encontraram parte da sua alimentação.
Depois da organização politica do agregado, surge o plano de defesa da sua vida colectiva.
D. Dinis, no século XIII, com uma alta visão de homem de Estado, contrata italianos para ensinar aos nossos a rudimentar arte de navegar conhecida no Mediterrâneo e manda cultivar madeiras para construir embarcações.
No século seguinte começaram os reconhecimentos na costa noroeste africana. No período de quatrocentos, o Infante D. Henrique funda a escola de Sagres, criadora da ciência náutica que gerou a moderna civilização transoceânica. Na mesma época descobrem-se os arquipélagos da Madeira e Açores e continua-se a ladear a costa de Africa. Gil Eanes passa o Cabo Bojador, Bartolomeu Dias o das Tormentas. E no alvor do século XVI Gama descobre o caminho marítimo para a índia e Cabral atinge o Brasil. Fernando de Magalhães completa a epopeia volteando o globo.
A história aparece então em toda a sua beleza ao ter-se conhecimento da sabedoria e inteligência com que o plano foi concebido e executado.
Da India vieram o ouro e as especiarias. Do Brasil madeiras preciosas e outras riquezas. Na África formaram-se centros colonizadores.
A realização desse plano deu-nos uma supremacia sobre os outros povos que é ainda a razão da existência do Portugal de hoje.
Tiveram os navegadores os seus cooperadores nos reis, nos sábios e no povo que deu os contingentes para as tripulações mas muito em especial os artífices para a construção dos navios que as fizeram transportar.
Merecem todo o nosso respeito e consideração estes modestos colaboradores dos nossos descobrimentos marítimos pela forma como se houveram na fábrica dessas naves que resistiram à furia das águas e dos ventos. Procediam às suas construções o mais próximo possível de um cais, denominando-se a área ocupada por “Tercena”, antiga designação de “estaleiro naval”.
Estavam os artifices da construção naval divididos em petintais, carpinteiros e calafates. O petintal corresponde ao “carpinteiro de machado” de hoje, que se distingue dos outros carpinteiros por saber trabalhar com a enxó de cabo grande (para escavar as madeiras rijas do cavername). O termo “petintal” desapareceu e o de “carpinteiro” generalizou-se a ambas as categorias de artífices. Hoje distinguem-se ainda os “carpinteiros de branco” e os “de machado”. O petintal ou carpinteiro de machado, por vezes, acumula com o oficio de calafate (artífice especializado das essências florestais, bom linho e boas estopas). Oficiais de outros ofícios havia que cooperavam nos trabalhos da factura das embarcações, como cordoeiros, ferreiros e remolares, mas a acção destes exercia-se com a embarcação na água.
Os carpinteiros, calafates, tal como os arrais, mareantes e pilotos das naus de guerra da carreira da India, gozavam de grandes privilégios concedidos pelos reis D. Fernando, D:
João I, D. Duarte, D. Pedro (Regente), D. Afonso V, D. João Il, D. Manuel, D. João III, D. Sebastião e D. José e por fim confirmados pela Rainha D. Maria I. Pode dizer-se que essas classes, pela isenção de impostos e liberdades de que gozavam, estando dispensados de vários serviços que competiam à maioria dos cidadãos, eram tratados quase como nobres. Havia possivelmente a compreensão de que o destino da Pátria deles muito dependia.
Eram ciosos dos seus direitos, não permitindo que lhes superintendessem nem o Almirante do Reino, nem os Vedores da Fazenda, nem sequer o Almoxarife da área da sua residência, recebendo somente ordens dos seus legítimos mestre examinadores de carpinteiros e calafates.
Peniche, com as suas características e dada a sua situação geográfica, é, desde há muito, um importante polo da construção naval no nosso pais, não havendo já memória desde quando a arte da construção naval tem a sua actividade por estas bandas.
Pelo que nos é dado aperceber, não era difícil fazer chegar a esta então “ilha de Peniche” a madeira necessária para a construção das embarcações, vinda do vasto Pinhal de Leiria, por via marítima da Praia de S. Pedro de Moel, embarcada em navios de cabotagem que fundeavam perto de terra e que a levavam para Lisboa, alguma tendo como destino final as “tercenas” navais situadas na Ribeira das Naus, fazendo desvio para a entrega das encomendas destinadas a esta costa.
o documento mais antigo sobre os artifices da construção naval em Peniche que me foi possível consultar está registado no Livro de Vereações da Câmara Municipal de Peniche (2/12/1650) e relata o seguinte testemunho:
o Licenciado António de Aguiar da Silva apresentou uma provisão do Conde de Cantanhede, do Conselho de Sua Majestade, na qual se ordenava que o dito licenciado viesse a Peniche e ordenasse que todos os carpinteiros de navios ai existentes fossem trabalhar num galeão que se estava aprestando para ir à índia. Assim, foram declarados Domingos Gomes, Mateus João e Antão Luiz, como carpinteiros competentes para esse fim. Sabendo-se que os dois Últimos estavam no Algarve, foi mandado apresentar nos armazéns de Sua Majestade, dentro de 3 dias, Domingos Gomes”.
O galeão era um meio de transporte misto, tão bem armado como a nau. Uma das exigências da artilharia para as naus e galeões, em muitos casos, somava um total (para ambos os tipos de embarcação) de 37 peças de ordenança, incluindo um camelo, 12 esferas, 8 pedreiros, 12 falcões e 6 berços, sendo a tonelagem destes navios variada entre 480 e 520 toneladas.
Acompanhou ao longo dos tempos esta industria a Irmandade dos Carpinteiros Navais, datada de 1 506, que tinha como Patrono o Glorioso “S. ROQUE”, que abrangia todos os trabalhadores da arte, não só em Lisboa como de todo o Pais. Era costume quando algum irmão da Irmandade estava doente pôr-se-lhe à cabeceira da cama a imagem de S. Roque, por ser o advogado contra a peste e bexigas. Outro costume duma interessante ingenuidade, que nos relatam as memórias, era o das filhas dos carpinteiros oferecerem os travesseiros da noite do noivado ao Santo, para serem felizes com os seus maridos.
Subsidiavam-se os carpinteiros mutuamente, não se esquecendo da sua Irmandade até mesmo quando longe no Brasil e resgatavam à sua custa os irmãos prisioneiros dos mouros no norte de Africa.
Resta da veneranda Imagem deste Santo que em tempos existiu ao culto na Igreja de S. Pedro, desta cidade, a pequena cabaça em madeira, seu atributo, em poder actualmente dum particular.
Recordo aqui que a construção naval em Peniche teve, ao longo dos tempos, os seus altos e baixos. Faço questão de aqui mencionar os mais conhecidos calafates de Peniche dos primeiros anos do século XX: Fernando Maria Malheiros
- Isaac d’Assumpção Bernardo - Carlos Domingos da Costa - Francisco Martins e Francisco Maria Malheiros, que eram especialistas em barcos de navegação à vela, designadamente o “Batel”, o “Lugre”, a “Barca”, a “Escuna”, o “Cerco volante”, o “Palhabote”, o “Patacho”, o “Caíque” e as lanchas.
Os ventos da História mudaram e à medida que a revolução industrial avançava as velas foram rareando e com elas os bonitos veleiros.
Foi então, nos fins da década de vinte, que as barcas e os caíques, mais usuais na nossa praça, começaram a ser substituídos pelas traineiras. O seu tempo tinha passado, já não era rentável a embarcação à vela, dado terem surgido fontes alternativas de energia com melhores rendimento.
Foram a máquina a vapor e o motor que fizeram arriar as velas.
Passaram a construir-se aqui traineiras do modelo entrado nesta praça em 1913, o primeiro exemplar comprado em Vigo a 19 de Abril daquele ano por António Andrade, de Peniche, modelo de embarcação que passa a ser denomina do “traineira tipo Vigo”.
As sucessivas alterações nas dimensões e características dos cascos das traineiras tipo Vigo resultaram no modelo dito “tipo Peniche”, que surge em 1927 - com a sua popa direita e motor a petróleo, com as dimensões de 12,60 m de comprimento, 3,60 m de boca e 1,70 m de pontal.
Os artífices de Peniche vão sempre tentando não ficar para trás nos seus modelos de construção. Anos depois, em 1936, foi construída uma traineira que ostenta já alterações de formato, principalmente à proa, equipada com o primeiro motor a gasóleo. Nos primeiros anos da década de 50 são construídas as traineiras do modelo “popa de leque”, forma prática de desviar as redes da hélice, já que a manobra destas era feita a uma das bordas. Em simultâneo foi feito pedido ao Poder Central para que as traineiras passassem a ter aumento de 13 para 14 metros, de modo a permitir instalar um porão de gelo avante do porão do peixe.
A partir de então, nos meados do século vinte, regista-se a grande evolução da construção naval em Peniche. A frota estava envelhecida e desactualizada para a captura do grande volume de peixe já movimentado na época.
Os pequenos estaleiros que existiam em recintos fechados, nas ruas das Amoreiras e S. Marcos, Largo de Nossa Senhora da Conceição e outros, foram substituídos por áreas espaçosas, junto à costa. Constituíram-se firmas e facilitou-se o ingresso de novos aprendizes no ofício.
Com as novas instalações, junto às praias, deixou de ter grande utilidade para o fim para que foi criada a chamada “Rampa da Ribeira”, construída entre o Campo da Torre (Campo da República - junto da entrada exterior para a Fortaleza) e a praia do então Portinho de Revés. Esta rampa, revestida a pedra polida, foi durante muitos anos o caminho das embarcações que no seu “bota-abaixo” atravessavam o Campo da República em direcção ao mar.
(continuação da página anterior)
Contudo, com as suas mudanças, a nobre arte da carpintaria naval não perdeu o velho sabor do segredo medieval. As suas modalidades de trabalho bastante contribuíram para as obras primas apresentadas. À volta da industria da construção naval propriamente dita passou a girar uma série de indústrias auxiliares ou complementares (fabricação e manutenção de motores, a serralharia específica, o material eléctrico, etc.), sendo que actualmente nos estaleiros navais existentes por todo o país só é construído o casco da embarcação, que representa aproximadamente 50% do seu valor total.
É curioso salientar que após a grande evolução da construção naval em Peniche, em 1961 , estavam registadas na Capitania do Porto de Peniche 305 embarcações de propulsão mecânica e 447 de velas e remos e que em 1982 se mantinham os números elevados de 316 e 901 (entre as quais 44 traineiras, 20 cercadores e 72 embarcações da pesca industrial não associada.
Havia, sem dúvida trabalho suficiente para os quatro principais estaleiros e outros de menor importância. Neles 300 pessoas trabalhavam em barcos de madeira, não só nas grandes construções mas também nas grandes e pequenas reparações.
Com o afastamento dos principais mestres calafates, pelas idades avançadas e pelas doenças a que foram sujeitos, alguns dos seus operários e discípulos juntaram-se e formaram, a 27 de Março de 1977, uma cooperativa designada por UNIÃO DA GAMBOA - ESTALEIROS NAVAIS DE PENICHE - Sociedade Cooperativa de Responsabilidade Limitada, constituída por escritura pública lavrada no Cartório Notarial de Peniche. Dela faziam parte 13 elementos. (Livro de Notas número 2/D). Mais tarde, a 9/11/1983, no mesmo Cartório Notarial, foi consagrada alteração dos estatutos da cooperativa, na presença do Notário Rui Jorge Pereira Mendes.
Com o encerramento dos outros espaços ficou a funcionar o estaleiro da Praia da Gamboa
(junto da Estrada Nacional n.° 114, na freguesia de Ajuda, em Peniche.
No mês de Outubro de 2003 o Último barco em construção naquele estaleiro, o “Principe do Alentejo”, encomenda de um armador de Sines para a pesca do cerco, estava em acabamentos para ser lançada à agua e os 10 trabalhadores que acompanharam a obra viram o seu futuro incerto e preocupante com a falta de encomendas para construção de novas embarcações.
A crise vivida no sector das pescas deu origem ao encerramento deste estaleiro, um dos Últimos resistentes na arte da construção naval em madeira não só em Peniche como no País. O currículo desta empresa foi vasto na sua modalidade de construção. Dedicou-se não só à construção de embarcações de pesca como de recreio e de transporte de passageiros. Foi deste estaleiro que saiu para as águas do Atlântico o “Cabo Avelar Pessoa”, embarcação que faz o transporte para a ilha da Berlenga. A maioria das construções foram encomendas de traineiras (barcos entre os 18/20 metros) mas a maior obra ali concretizada foi uma embarcação com 32 metros de comprimento.
Continuam em actividade os Estaleiros Navais do Porto de Peniche, autorizada a concessão da construção e exploração à Junta Autónoma dos Porto do Centro, outorgada mediante concurso público conforme deliberação do Conselho de Ministros de 30/4/1992.
Em plena actividade, parte das suas obras é feita com materiais inovadores à base de poliéster com fibra de vidro. Os Estaleiros Navais de Peniche construíram já 10 embarcações de pesca para o Governo de Cabo Verde, encomenda que ascendeu a 12 milhões de euros (2,4 milhões de contos). Já então, desde a criação deste estaleiro, dele tinham saído seis navios em fibra de vidro e dois de aço. A frente dos destinos desta empresa está Carlos Norberto Freitas Mota, na qualidade de Presidente do Conselho de Administração.
Continua em actividade o recurso tradicional à madeira pois é de grande necessidade o apoio a dar às reparações da frota existente no nosso porto.
Todo este desenvolvimento naval significa “inovação” e demonstra a capacidade nacional para “produzir embarcações de dimensões significativas com um bom nível de qualidade”.
Continua, assim, a actividade da construção naval em Peniche mantendo a importância económica tem tido ao longo dos séculos, desde a época dos descobrimentos até aos nossos dias.
Não esquecendo a memória de todos aqueles que ao longo dos séculos trabalharam na construção naval em Peniche, recordo aqui o nome de alguns mestres e artífices que no início da primeira metade do século XX se mantinham em actividade. Uma singela homenagem aos grandes mestres irmãos Malheiros (Manuel António Malheiros, Francisco Fernandes Malheiros (Chico Malheiros) e António Malheiros) e seus familiares ligados ao mesmo ramo, mestre Carlos Domingos da Costa e seus filhos, mestre José Carriço, mestre João Principe, mestre Manuel Rapaz, mestre José Inácio Bandeira e outros que os acompanharam (José Homem, José Carepa, Mário Leitão (Mário Carinhas - pai e filho), Cesaltino Leitão (pai e filho) e muitos mais... não esquecendo aqui o trabalho árduo dos “Serradores” que se deslocavam das suas terras por períodos grandes (quase sempre trabalhadores da zona de Pedrogão) que só regressavam às suas terras depois de concluídos os trabalhos que lhes eram confiados.

quinta-feira, setembro 07, 2006

Antigamente e Actualmente

Local em que hoje é situado o ISN Instituto de Socorros a Náufragos como se pode ver na imagem seguinte esta fotografia foi tirada provavelmente na 1° metade do século XX
Uma visão recente. ”Afinal não é só na Holanda que roubam a terra ao mar!!
Avenida do Mar provavelmente nos anos 1950 ou 60?

Actualmente

Antigamente e Actualmente

Antiga ribeira foto tirada na 1° metade do século XX

O mesmo local em 2003

Antigamente e Actualmente

Fortaleza de Peniche provavelmente na 1° metade do século XX

Fortaleza de Peniche actualmente em 2006

segunda-feira, setembro 04, 2006

História da igreja da Santa Casa da misericórdia de Peniche

por : Fernando Engenheiro
A casa que servia de hospital da Confraria do Corpo Santo de Peniche foi entregue à irmandade da Santa Casa de Misericórdia pouco tempo depois desta criada, para continuação das funções ali exercidas, passando também para a nova Instituição toda a responsabilidade pela sua administração.
Nas obrigações daquele pio estabelecimento estavam abrangidas as 14 Obras de Misericórdia, divididas em igual número como corporais e espirituais.
Havia que dar cumprimento à vontade de Deus e a alimentação do espírito incluía o sufrágio das almas, Não podemos esquecer que o sufrágio dos almas era considerado uma das Obras de Misericórdia mais importantes.
Salvar a alma ara mais importante que o corpo - e a imponência das cerimónias era prioritária na mentalidade da época.
Assim, logo após a sua constituição, a Santa Casa da Misericórdia de Peniche apressou-so a escolher um terreno que lhe servisse para edificar Casa de Deus, a sua Capela. A escolha recaiu num terreno, então ocupado por um armazém, que ficava contiguo ao edificio do hospital em causa.
Tinha como confrontações: pelo nascente o seguimento da rua do Palha (documento de décimas de 1609)-actual rua 13 de infantaria, do Sul a travessa da Palha, que também, foi conhecida pela do Conde, do Poente o então largo do Corpo Santo e do Norte o proprietário.
Este armazém servia de depósito de mercadorias e produtos vindos do Brasil e da Africa, trazidos pelas caravelas de Peniche. Na zona existiam outros armazéns onde se guardavam também, conforme o topónimo indica, grandes quantidades de palha.
Logo que foi eleita a Mesa da irmandade da Misericórdia em 2 de Julho de 1627 (dia de Santa Isabel, prima da Virgem Maria)-em que tradicionalmente se celebrava a festa de Nossa Senhora da Visitação - imediatamente se iniciaram as obras de construção do templo.
No começo não houve grandes dificuldades na construção, pois que a referida irmandade, que foi criada com base na irmandade do Calvário, recebeu desta todo o seu património e rendimento, podendo, assim, com mais facilidade atingir os fins a que se propunha.
E logo se seguiram outros rendimentos com a entrada de novos irmãos, acompanhamento dos funerais e inumações em lugares de destaque, bem como os resultantes das importâncias dadas em acção de graças pelo bom sucesso de viagens do Brasil, Arguim, Ceuta, ilhas e de outros locais.
Mesmo assim para a primeira fase acabou por haver necessidade de recorrer ao empréstimo de 45.000 reis, cedidos, a título de empréstimo, por 11 irmãos que, naquele periodo de 1627/28, estavam à frente dos destinos da instituição.
Neste número estava incluído o 4° Conde de Atouguia e Senhor de Peniche D. João Gonçalves de Ataíde, que exerceu as funções de Provedor no período compreendido entre 1626/28.
Havia a intenção, ou talvez uma obrigação, de seguir o risco da edificação da Misericórdia de Lisboa, tentando-se urna identidade de actuações tão próxima quanto possível.
Em pouco menos de 2 anos, nos fins de Dezembro de 1629, embora não estivesse completa toda a cobertura, já a parte do altar-mor estava pronta à celebração da eucaristia.
Recebeu na mesma altura a sagração e foi chamada igreja, embora as obras tivessem durado até 1634.
Nos anos de 1637/38, para que o altar mór fosse “privilegiado”, foi obtida uma bula do Papa Urbano VIII.
Na mesma época foi colocada no pedestal a Imagem de Nossa Senhora da Visitação, como orago daquela igreja. A festa em honra de Nossa Senhora da Visitação, celebrada tradicionalmente a 2 de Julho (actualmente em 31 de Maio) que foi sempre considerada como o Dia das Misericórdias.
Os Provedores e Mesários tomaram Nossa Senhora, no passo da sua visita a Santa Isabel, como Nossa Senhora da Disponibilidade, do Serviço, de Urgência, da Solidariedade, do Atendimento, pronta a quem mais precisa.
A Mesa, sendo Provedor o Capitão Domingos Franco Cochado, com a sua equipa, Bartolomeu Paixão (escrivão), João Figueira, o velho (Tesoureiro) e Jerónimo Mota (procurador). põe mãos à obra e começa com a 2° fase das obras de construção da Igreja em 1643, agora no seu interior.
Procedem ao forro do tecto, cuja despesa em madeira, pregos e oficiais, bem como outros custos pertencentes a dita obra, foi de 79$920 réis.
No mesmo ano deram de sinal para o azulejo, destinado a se “azulejar as paredes da mesma igreja, 70$808 réis.
Havia necessidade de se construir um coro para a actuação dos acompanhantes musicais nos actos litúrgicos. Em 1652 é feita encomenda das colunas que serviriam de suporte ao piso superior, pelas quais foi paga a importância do 20$000 réis. O madeiramento utilizado possivelmente foi adquirido, ou oferecido, pelos serviços alfandegários de Peniche, pois que todo aquele material ali aplicado fazia parte de barcos naufragados, cuja madeira, após o sou desmantelamento, era aproveitada para fins diversos.
Desde os primeiros tempos que todos se preocupavam com o recheio e património artístico da igreja e, nesse sentido, sempre que lhes foi possível, enriqueceram o interior do templo com as alfaias litúrgicas necessárias. Não foi esquecida a bandeira da Irmandade, para se fazer representar en solenidades civis e eclesiásticas, sendo um testemunho feliz do mais sagrada das missões e cruzadas.
Também era uso a sua presença quando iam a enterrar nas suas tumbas ou esquifes os pobres e os justiçados, assumindo igualmente o dever de conduzir à sua última jazida os cadáveres dos seus irmãos falecidos, acompanhando-os a Confraria processionalmente, de bandeira arvorada na frente do fúnebre préstito.
Na bandeira está representada a “Virgem do Manto”, a Virgem Maria com um manto amplamente aberto, sob o quai se recolhem o Papa, o Rei e a família real, prelados, sacerdotes e populares, isto é uma manifestação de toda a misericórdia de Nossa Senhora, numa atitude que entre nós se tornou familiar e emblemática.
Procedeu-se em 1656/57 à construção de uma sacristia. pois que havia necessidade de uma dependência resguardada onde os elementos dos actos litúrgicos se pudessem paramentar, bem como do seu apetrechamento com um, arcaz para nele se guardarem todos os paramentos o restantes tecidos sacros.
Mais tarde foram enriquecidas suas paredes com azulejos policromos de bom desenho, de cores vibrantes e com a colocação de 7 quadros, pintados sobre tábuas. por cima do referido móvel de guarda das alfaias litúrgicas, representando as sete Obras de Misericórdia (as corporais).
Em 1695 foi colocado o púlpito, com o seu acesso exterior, bem como a obra das banquetas (possivelmente e tribuna dos Mesários), havendo en cofre para essas despesas 9.397.000 réis, mais 10.000 réis que deu de esmola o Provedor, o Sargento-Mor Martinho de Sá.
Uma obra notável enalteceu bastante o exterior desta igreja. Trata-se da Torre do Relógio, mandada edificar pela Câmara Municipal com a concordância do Provedor, Padre Vicente Gorjão da Mota e dos restantes elementos que constituíam a Mesa. Teve o lançamento da primeira pedra em 31/7/1697.
Mas os melhoramentos na Igreja prosseguiram, em consonância com as boas consciências de que eram portadores os dirigentes da Irmandade, pois tudo aquilo que enriquecesse a casa de Deus, com todos os ornamentos possíveis, nunca era demais para que se tomasse mais bela a casa do Omnipotente.
Pretenderam forrar todo o tecto com quadros bíblicos alusivos a cenas ao novo testamento, o que, atendendo ao espaço a preencher e as medidas a adoptar, perfazia 55 telas, dispostas em 11 filas de 5 caixões cada.
Começaram por fazer as encomendas directas a pintores de arte a partir de 1677 e, satisfeitos os pedidos formulados, em 1705 estava todo o espaço ocupado.
De registar a boa vontade de alguns irmãos que comparticiparam nestas despesas com os seus donativos, custando cada quadro 7.000 reis. Foram eles: o capitão Francisco Monteiro Figueira com a oferta de 8 quadros, o Capitão António Luis com 10 e Filipe Mendes com 1.
Continuaram em plena actividade as obrigações contidas no Compromisso aprovado a 29/10/1629, graças aos doadores que ao longo dos anos contribuíram bastante para a sua continua extensão.
As cerimónias da Quaresma, em especial a Semana Santa ou “Endoenças”, estavam a cargo da Irmandade, o que incluía as procissões dos Passos -Ramos - Senhor da Cana Verde, bem como a do “Enterro do Senhor”, esta que começou em 1695 (até então fazia-se o descimento da cruz no pátio da Capela do Calvário sondo depositada a imagem no piso inferior daquele pequeno templo, no chamado “Sepulcro”, envolvido num lençol, até ao 3° dia da subida aos Céus, conforme as Escrituras).
Na mesma época (1692/95), foram substituídas as imagens do Senhor dos Passos e de Nossa Senhora do Despacho, também conhecida pelo povo por “Senhora da Soledade” e a do Senhor utilizada para as cerimónias do descimento da cruz, por estarem bastante danificadas. Procedeu-se a uma nova aquisição, a título de compra, respectivamente, por 20.900 réis (as duas primeiras) e por 22.000 reis (a terceira).
Também, por se encontrar todo o madeirarnento do frontal da Capela-Mor em mau estado de conservação, em 26/4/1767, foi entregue a obra da sua total substituição ao entalhador Manuel Martins da Ribeira, residente na Lourinhã, trabalho que foi adjudicado por empreitada, pelo prazo de um ano e pela importância de 300.000 reis.
Compreendia a obra toda a talha e douramento, bem como as três capelas e mais todo o retábulo, tudo em madeira do pinhal de El-Rei ou de Flandres.
Poucos anos depois, em 1755, com e terrível terramoto de 1 de Novembre, a igreja e o Hospital sofreram grandes danos.
A aflição de povo foi tão grande que, debaixo dos seus tormentos, prometeram à Virgem uma procissão de acção de graças, a realizar anualmente, em comemoração daquele dia, por o castigo não ser ainda maior. Isto porque as águas não subiram mais além dos pés de Nossa Senhora do Despacho no seu altar. Estas cerimónias públicas no exterior chegaram até à implantação da República (5/10/1910).
Como acontece com tudo que não é eterno, as telas do tecto da igreja sofreram os efeitos do tempo e, assim, em 1812, foram restaurados pelo pintor de arte António José Rodrigues Raieta, natural de Braga, 3 dos quadros que ornavam o tecto e que se achavam em parte destruídos por grandes roturas.
Também António da Costa e Oliveira, em Julho de 1858, reformou parte dos quadros do referido tecto, trabalho que importou em 138.900 reis.
Ao longo dos séculos e até aos nossos dias, o edificio da Igreja deu sempre e maior apoio ao hospital que lhe ficava contiguo, possuindo até uma galeria no andar superior que permitia aos doentes internados assistir aos ofícios divinos. Foi utilizada como capela funerária e só em 1845, par força da Lei da Saúde de 26 de Novembro, deixaram de nela ser sepultados os irmãos falecidos. Já depois da publicação da referida Lei foi utilizado para enterramentos o pequeno logradouro que possuía a sul (espaço actualmente ajardinado e integrado na via pública).
Restam 2 pedras tumulares na parte interior da entrada principal daquele templo, cobrindo os restos mortais de Mesário Domingos Vaz Patinhas, falecido em 1640, e de Paulino Quaresma, esta datada de 1660.
Ali foram sepultados, possivelmente a seu pedido, em gestos de humildade para que toda a gente pisasse os seus restos mortais, au melhor dizendo lhes “passasse por cima”.
De entre as valores que enriquecem o seu património (e não é possível referir todos) são de salientar duas peças vindas do extinto Convento do Bom Jesus de Peniche, que fechou suas portas em 1834. Urna pia de água-benta, do século XVI, estilo manuelino, bem como um Tabernáculo colocado no lugar adequado.
Por muitos anos se realizaram naquele espaço, na época adequada, as cerimónias da Semana Santa, com algumas alterações, conforme a vontade dos homens.
Já muito próximo dos nossos tempos, em 1932, a Irmandade da Santa Casa da Misericórdia teve a honra de receber os restos mortais de D. Luis de Ataide, 3° Conde de Atouguia e Senhor de Peniche, que foi par duas vezes Vice Rei da India. Ali foram colocados num sarcófago mandado construir pela Câmara Municipal. Esta destacada figura da nossa história faleceu na India e, par sua manifestação de vontade, foi inicialmente sepultado no Convento de Bom Jesus de Peniche. Extinto o Convento foram as suas ossadas colocadas na Igreja de Nossa Senhora da Ajuda e daí trasladadas a 8/5/1932.
Atendendo à sua arquitectura e ao valor artistico do seu interior, este templo foi, ao abrigo do Decreto Lei n°181/70, de 28 de Abril, nos termos dos seus artigos 1° e 2°, por despacho ministerial, classificado cormo imóvel de interesse público.
Logo a seguir, nos termos do mesmo despacho, foi determinado que o Instituto José de Figueiredo enviasse uma sua brigada móvel a Peniche a fim de estudar in-loco as pinturas da Igreja, que se encontravam à beira do impossível para a sua restauração. Todos os quadros artísticos que cobrem o tecto foram então para restauro naquele Instituto, de onde regressaram depois de alguns anos de valioso trabalho de restauro.
Também a Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais se preocupou com a degradação que a Igreja então apresentava e nela promoveu as obras de que este monumento estava a necessitar. Na década de 1980 foi substituída toda a cobertura e, porque se apresentava descolada grande parte da azulejaria que cobre as suas paredes, todos os azulejos da Igreja foram levantados e recolocados. O pavimento de madeira que a igreja possuía foi, na altura, substituído por tijoleira.
Em meados de 1984 estava tudo nos seus devidos lugares e todo o espaço da Igreja recuperada e pronto ao desempenho do seu culto divino. Ali se celebra a Eucaristia com regularidade, na quarta 5° feira de cada mês.
A beleza artística desta Igreja é bem difícil de descrever per palavras mas serão muito poucos os penichenses que não a conhecem.